segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Alberto Caeiro: poema sobre Cesário Verde







III


Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente.
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas coisas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros...


s.d.
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro.

Sempre que penso uma coisa, traio-a.


Sempre que penso uma coisa, traio-a.
Só tendo-a diante de mim devo pensar nela.
Não pensando, mas vendo,
Não com o pensamento, mas com os olhos.
Uma coisa que é visível existe para se ver,
E o que existe para os olhos não tem que existir para o pensamento;
Só existe verdadeiramente para o pensamento e não para os olhos.

Olho, e as coisas existem.
Penso e existo só eu.


21-5-1917


“Poemas Inconjuntos”. Poemas Completos de Alberto Caeiro. 


sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Uma carta de Campos a Caeiro


O que eu adoro nos seus versos não é o sistema filosófico...

     (...)
     O que eu adoro nos seus versos não é o sistema filosófico que me dizem que se pode tirar de lá: é o sistema filosófico que não se pode tirar de lá. É a frescura, a limpidez, a primitividade de sensações. É a falta de sistema, precisamente. É que os seus versos não me fazem pensar: fazem-me sentir; e não me fazem sentir amor, ódio, qualquer paixão ou emoção comercial — fazem-me sentir as coisas como se eu estivesse olhando para elas com um grande interesse e atenção.

     Acho que está gasta a poesia amorosa, a poesia sentimental, a poesia patriótica, a poesia da natureza, a poesia de (...) — está gasta toda a poesia que é poesia de tal coisa ou de tal outra coisa. Só não está gasta a poesia das sensações, porque as sensações são individuais e as individualidades nunca se repetem. Devemos, creio, tentar dar o mais completamente possível uma expressão às nossas sensações. As nossas sensações individuais não são as de amor, as de ódio, as (...) - porque essas são demasiado semelhantes em todos os homens, e só pode haver variação na expressão delas, pelo qual processo a arte fatalmente se formaliza, se plasticiza em excesso. O que é bem nosso nas sensações, as sensações que são bem nossas, são as sensações diretas, as que não têm carácter social, as que vêm directamente de ver, ouvir, cheirar, palpar, gostar, e as sensações de vidas previamente vividas, provindas do nosso passado que é só nosso, em cada um de nós só dele essas sensações provêm, por contraditórias, absurdas, desumanas que sejam.

     Por isso eu digo que não há poetas do amor, nem da pátria, nem do (...), nem de outra coisa de ordem social. A poesia é individual. A poesia não é para exprimir as emoções sociais. As emoções sociais exprimem-se pela ação, cada emoção social pela ação relativa a ela. A poesia existe para exprimir aquilo que as ações e os gestos não podem exprimir.

     Na sua poesia, meu querido Mestre, é a realização disto que eu aprecio, não a qualidade, que lhe atribuem, de cantar não sei que virtudes pagãs. O paganismo importa-me tão pouco como o cristianismo, como qualquer coisa que não seja eu e as minhas sensações. Basta o seu desprezo pelas actuais doutrinas, artísticas e sociais, para me encher de entusiasmo.

     Dirão, é verdade, que o que é individual não deve constituir arte, porque os outros não sentirão. É um disparate. Logo que uma coisa se pode exprimir por palavras, outra pessoa, se não é estúpida ou de outra ordem da sensibilidade — e vive (...) —, pode senti-la. Aquelas emoções estranhas que não se podem exprimir... se elas se não podem exprimir como é que os outros as hão-de compreender ou deixar de compreender? Desde que uma coisa cabe em palavras, cabe na compreensão dos outros. Essa compreensão, é verdade, nunca é perfeita, porque todos somos diferentes e não sentimos as coisas do mesmo modo; mas é compreendida e isso basta.

     Eu explico ainda melhor. Toda a gente sente uma sensação de alegria perante um dia extraordinariamente belo. Esta emoção é autêntica, porque não serve para fim nenhum social, nem se pode traduzir por um ato, por uma ação — podemos olhar para o dia e gozá-lo, mas é uma emoção noutro sentido. Apreciar uma mulher bela ou qualquer beleza, é já outra coisa — e por isso é positivamente desprezível — porque aí a comparação pode ter o motivo de se passar a uma expressão máxima e mais direta, repare-se bem, mais direta.

     Já me disseram que há paisagens perante as quais não se podia fazer se não urrar de alegria. Urre-  -se, se isso é que exprime alegria. Sé é coisa que se possa dizer, diga-se.
Mas acaba-se, de uma vez para sempre, com a poesia social, amorosa, patriótica, de ódio, de amor, 
(...)

     Quem tiver acessos de humanitarismo deve dar escolas, ou ser enfermeiro, ou outra coisa assim. O humanitarismo distribui-se por muitos, porque é de ordem social com emoção.

     A vida é uma viagem que uns fazem em caixeiros-viajantes, outros em navios em lua de mel, e outros, como eu, em tourists. Eu atravesso a vida para olhar para ela. Tudo é paisagem para mim, como para o bom tourist — campos, cidades, casas, fábricas, luzes, bares, mulheres, dores, alegrias, dúvidas, guerras (...). Quero, para aproveitar a minha viagem, sentir o maior número de coisas no mais pequeno espaço de tempo possível. Sentir tudo de todas as maneiras, amar tudo de todas as formas, tocar e ver coisas e não lhes pegar, passar por elas e não olhar para trás — parece-me o único destino digno dum poeta.


1917

Carta a Caeiro. 1ª versão: Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

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